Francisco Gil

Contemplações

Francisco Gil

Dom Sebastião de Cutileiro

A escultura em espaços públicos em Portugal, não tem tido grande expressão no panorama artístico nacional. Durante anos as encomendas oficiais, estiveram presas aos cânones estéticos do séculos XVIII e XIX. Todavia, já na segunda metade do século XX, surgiu uma obra que representou uma relevante transformação de paradigma.

Em 1973, para a comemoração dos 400 anos da cidade algarvia de Lagos, foi encomendada pelo presidente da Câmara de então ao escultor João Cutileiro, a residir na cidade nessa altura, uma estátua de D. Sebastião (o fundador da cidade e figura mítica da história de Portugal) para a colocar numa pequena praça no centro da localidade.
Nesse ano de quase ocaso do regime liderado por Marcelo Caetano, sucessor de António Salazar, a ousadia da obra de Cutileiro conseguiu sobreviver à polémica que a envolveu na altura. A escultura representa uma forte rotura com os paradigmas da celebração monumental, no Portugal da década de setenta ainda ligado a um neoclassicismo estilizado, herdado de Francisco Franco (de que Cutileiro tinha sido aluno). Com uma estrutura formalmente compósita, constituída por vários elementos distintos, as marcas do trabalho mecânico do mármore visíveis e sem pedestal, o D. Sebastião de João Cutileiro, efeminado e apeado, olha em direção a África, sendo a derrota antevista no seu olhar vazio, como uma premonição de um segundo fracasso africano que o ano de 1973 fazia antever.

Inaugurada em setembro, logo no mês seguinte, marcando um apoio que previa o risco de a polémica vitimar a estátua definitivamente, o historiador José-Augusto França escreveu um artigo no Diário de Lisboa que apontava claramente a modernidade estética da obra, para além de assinalar a questão política que o recente monumento colocava: «O herói (o anti-herói - mas teremos a coragem de o saber assim?) olha-nos, pousado quase no mesmo chão que pisamos. Olha-nos, sem nos ver, fantasma de si - quiçá de nós próprios. Na cabeça pequena, os olhos luzem na sombra das órbitas e a face de efebo diminui sob a imensa cabeleira de pajem. Daí para baixo cai o corpo articulado de braços e pernas, com o tronco inchado pela armadura, e as mãos sem jeito, dentro dos guantes. O elmo, aos pés, é uma lembrança apenas: a espada perdeu-se no combate imaginário. D. Sebastião - meditação - para 1973 - alguém o suspeitaria, depois das polémicas da geração romântica e da geração de 90, e dos anos 20 do Malheiro Dias? Mas ele ali está, de pedra bruta, e nos olha. Há que, algum dia, lhe responder. Há, sobretudo, que entender a pergunta que nos faz.»

Num País no qual as obras de arte em espaços públicos têm uma enorme dificuldade em se libertar da decoratividade inócua, o D. Sebastião de João Cutileiro constituiu uma poderosa afirmação política, uma negação esteticamente eficaz da monumentalidade como demissão do debate e da interrogação, conseguindo, talvez pela última vez, fazer irromper a modernidade no contexto da estatuária urbana.

O Dom Sebastião de Cutileiro é uma peça do início da década de 1970, uma peça anterior ao 25 de Abril de 1974, que tem um sentido de oportunidade enorme: Sendo uma homenagem a um rei, é uma espécie de visão crítica sobre o Portugal do Estado Novo, sobre um país com umas luvas e umas botas pesadas demais para se conseguir mexer, e é uma obra que, de alguma maneira, sintetiza um espírito de uma época, um sentido crítico de uma época, e a oportunidade que a escultura no espaço público pode ter. (Delfim Sardo, 2021).

Leituras adicionais:
França, José-Augusto. 1984. A Arte em Portugal no Século XX (1911 -1961). Lisboa: Bertrand Editora.

Pereira, J. Fernandes (dir.). 2005. Dicionário de Escultura Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho.

Pinharanda, João Lima. 1997. “O declínio ds vanguardas: dos anos 50 ao fim do milénio. Anos 50: Uma década de Fusão”. História da Arte Portuguesa. volume 3. Direcção de Paulo Pereira. Círculo de Leitores.

Soares, A. P. Gil. 2012. A estatuária e a escultura figurativa urbana:conceptualização de estatuária no espaço urbano. [Texto policopiado]. Pós-doutoramento em Estudos Artísticos. Lisboa: Universidade de Lisboa. Faculdade de Letras.