Desidério Lucas do Ó

Cante na Alma

Desidério Lucas do Ó

Grilos e boa gente


“Sou algum grilo?” - Era com esta frase lapidar que os jovens (ou menos jovens) da minha geração respondiam, quando alguém lhes perguntava se queriam salada para acompanhar a refeição.

Numa visita a Vila de Frades, nos anos 80 do século passado, jantei num velho café acompanhado por um amigo estrangeiro. A ementa prometia. Perguntei se vinha salada a acompanhar. “Não, amigo, não temos salada”, foi a resposta, com ar de alguma consternação.

Mal tínhamos iniciado a refrega quando apareceu na sala o Senhor José Rosa, empunhando orgulhosamente uma magnífica alface que tinha ido colher ao quintal e, dirigindo-se ao empregado, disse : “Tome lá, faça uma salada a estes amigos”.

Há situações que não se esquecem! Bom homem, o Senhor José Rosa.


"Cante an Menino" de Vila de Frades


" O Natal não era uma grande festa comparada com o entrudo. Mas sempre se fazia o presépio na igreja, para o qual íamos buscar musgo ao Olival da Casa e a descida do menino de Jesus pela chaminé também era excitante. Uma prendinha e já era um pau, um automóvel miniatura, sem motor, mas disso tratávamos nós.
O momento mais solene era o "cante an Menino", em casa, ou melhor ainda, quando os homens vinham bater à nossa porta e começavam a cantar. A excitação era enorme entre mim e a minha irmã, porque, na última quadra os homens cantavam : " senhora dona de casa, deixe-se estar que está bem/ mande-nos dar a esmola/ p'lo filhinho (ou filhinha que aí tem" e nós os dois, em pulgas, a disputar a honra de lhes ir entregar a linguiça... Depois o meu pai mandava entrar os homens e todos bebiam um copo de aguardente ao pé do lume."
E lá iam eles bater a outra porta que o tempo era de miséria e a Guarda proibia o cante na rua."
Obrigado, boas festas e um forte abraço para todos.
Desidério


Namoro

Antigamente os namoros eram muito diferentes: olhares, sorrisos, alguma piscadela de olho, em apalpanços nem pensar a não ser que nalgum baile se oferecesse a oportunidade. Ir passear com a namorada, nem pensar e quando o namoro estabilizava e se queria falar com a querida, era preciso ir falar com o pai dela e pedir se dava autorização para namorar à janela, ou ao postigo se a casa era mais humilde.

Foi o que fez o Jorge, simpático ruivo da Cuba (os de Vila de Frades chamavam-lhe “o Almagrado”) quando se apaixonou pela minha tia Manuela, irmã da Bia, a mana mais velha, que uns anos atrás tinha casado com o Zé do Ó, de quem já tinha 2 filhos.

Veio então o Jorge expressamente da Cuba na sua pasteleira, falar com o Sr. Desidério, pai da Manuela, pedindo que os deixasse namorar à janela. O Sr. Desidério, bom homem, disse que sim e combinou-se que a primeira atracagem à janela fosse no domingo seguinte. Grande excitação!!!

Acontece que o Zé do Ó e a Bia estavam convidados para um casamento em Vila Alva, terra de gente simpática e bom vinho branco. Convidaram logo a mana Manuela que só acedeu caso estivessem de volta no domingo por volta das 5, o primeiro dia oficial de namorar à janela.

Lá foram para Vila Alva. A “castanha” a puxar a carrinha, habilmente conduzida pelo Zé do Ó.

O casamento foi fantástico: começaram logo a cantar no “copo de água”, a festa prolongou-se pela ceia com muitos vivas à noiva e ao noivo, bailes de roda e jogos.

Já o sol tinha nascido quando um vilalveiro amigo desafiou o Zé do Ó e mais uns quantos para ir provar o dele, que a adega era logo ali. Aí continuaram de copo e cante e como já era dia a Manuela começou a ficar nervosa e a incitar a mana Bia a procurar o Zé do Ó para iniciarem a viagem de regresso à vila. Procuraram-no e lá o encontraram numa segunda adega batendo a moda e bebendo mais uns copitos.

Regressar já à vila para quê? Está-se aqui muito bem. Mas tu prometeste... vamos mais logo! A mim não deram autorização para namorar contigo à janela e agora a tua mana quer que eu a vá levar ao altar!... Mas a Bia lá o convenceu. Atrelou a mula à carrinha e até Vila de Frades não trocaram uma palavra, o Zé do Ó embezerrado, instigando a mula, ladeira abaixo, a Bia cheia de medo que ele tombasse a carrinha e a Manuela ansiosa por chegar a horas. Chegaram às cinco em ponto, o Almagrado já estava encostado à ombreira da taberna do Zé Miúdo, à espera do seu Primeiro Dia de Namoro com a Manuela.

Casaram (gostei muito dos bolos folhados do casamento) foram felizes e só há pouco nos deixaram.


A avó Leonor

A avó Leonor era uma mulher de armas. Dominava com mão firme todos os membros da família e mesmo o avô Desidério, seu marido, nem sempre tinha a vida facilitada. O que ela tinha de dominadora, tinha ele de risonho, negociador, brincalhão.

Quando chegava o tempo dos vinhos novos, o avô Desidério e os amigos costumavam encontrar-se aos domingos de manhã na taberna do Zé Miúdo para curtir a amizade e beber uns copitos, dos pequeninos.

Naquele domingo, quando chegou a casa para o almoço, ouviu logo da sua Leonor um áspero: “Já vens com um olhinho pequenino!”. Moita carrasco, almoçou e foi deitar-se no quarto escuro.

Passado algum tempo ouviu-se na cozinha os seus gemidos. A Leonor Júlia teve um momento de compaixão e foi ao quarto, abriu a porta e gritou asperamente lá para dentro: “Atão o que é que tem?” “Tenho frio nos pés, Leonor, arranha-me aí uma mantinha”. “O calor que tem na barriga ponha-o nos pés” e fechou a porta com estrondo.


Os Artistas

Temos também cá na vila outro grupo de homens de quem eu também gosto e que fazem coisas bonitas: são os artistas. Eu gosto muito dos carpinteiros, dos abegões e dos barbeiros. Gosto de ficar ali, nas oficinas, a ver o que eles fazem. Falam comigo e contam coisas engraçadas.

O meu primo Sebastião Estrela, que é abegão, faz trabalhos muito difíceis: carros de bestas, de parelha e charretes. Ele corta grandes troncos de árvores com uma serra maior do que eu.

São precisos dois homens, ele e um ajuda. Sentam-se um em frente do outro, cada um segura numa das pontas da serra e levam o dia a trabalhar e a fazer um barulho muito especial, que os ajuda a cortar: "hã! hã! hã! hã!". E depois ficam umas tábuas com as quais eles fazem carros, carretas e uma coisa que eu acho muito bonita: a roda de um carro ou de uma carrinha.

O mais bonito neste trabalho é que eles depois fazem um fogo com bosta de vaca. Metem o aro de ferro da roda no chão, fazem um lume redondo à volta do aro e, quando o aro fica em brasa, tiram-no de lá com umas tenazes muito grandes e colocam-no à volta da roda. O trabalho é feito muito depressa, antes que o aro arrefeça. Eles ficam todos suados, às vezes gritam uns com os outros mas, no fim, ficam muito contentes com a sua obra.

As ferramentas do abegão são muito grandes e pesadas. Têm muitas serras, algumas muito grandes, uma enxó e uma roda para fazer buracos. O abegão faz os carros com madeira de azinho, que é muito pesada e rija. E preciso fazer muita força e ter ferramentas boas.

Desidério do Ó, 2019
in . “Do Alentejo pró Mundo com o Cante na Alma”


O Jogo da Bola
Desidério Lucas do Ó

Eu gosto muito do jogo da bola, o pior é que não temos uma bola boa. Fazemos bolas com meias velhas e trapos e jogamos com elas. São boas para dar muitos toques, mas não saltam e o jogo é sempre rasteiro.
Um dia destes esteve cá um rapaz que não é da vila e trouxe uma bola de borracha que saltava muito.
A bola tinha laivos verdes e brancos, saltava mais do que o cão pelo de arame do primo Sebastião Estrela, era novinha em folha.
O moço até me deixou dar uns toques antes de começarmos o jogo. Quem escolheu as equipas foi esse moço e o Vítor. Eu fiquei a guarda-redes. Gostava mais de ter ficado a jogar a avançado, sempre podia ter metido algum golo, tão fácil era rematar com aquela bola linda!
Desta vez o jogo acabou em bem, não houve zaragata e até deixámos o dono da bola ganhar; ele até não era grande coisa, mas os companheiros passavam-lhe muito a bola para ele não se chatear, pegar na bola e ir-se embora.
Nessa noite não pensei noutra coisa: era bom ter uma bola assim e não aquelas bolas de trapo que se tornavam muito pesadas quando chovia.
Fui para a cama a pensar na bola, como seria bom ter uma! Sonhei com ela mas, quando acordei, ainda procurei debaixo das mantas mas nada, a bola não estava lá.
Pensei que, se voltasse a sonhar com ela, a seguraria com toda a força para que ela não se me escapasse outra vez. Não valia a pena tentar comprar uma, na vila não havia bolas daquelas à venda e se houvesse deviam custar muito dinheiro.
Nessa noite até fui mais cedo para a cama. Como não pensava noutra coisa tinha a certeza que ia voltar a sonhar com ela. E sonhei, sonhei com aquela bola linda, aos laivos brancos e verdes, dura, saltitona, que iria guardar muito bem guardadinha para a minha mãe não ver.
Acordei ainda era noite escura. Tinha as mãos engelhadas, doridas, mas a bola tinha-se novamente escapado.

Desidério do Ó, 2019
in . “Do Alentejo pró Mundo com o Cante na Alma”


O Cante
Desidério Lucas do Ó

Cantar é muito bonito. O que eu mais gosto é ouvir os homens cantar na taberna do meu tio Coelho. Às vezes vou lá espreitar. Fico à porta e vejo tudo o que se passa lá dentro: a taberna escura, os homens com grandes bigodes, quase todos com a barba crescida mas todos juntos; uns encostados ao balcão, outros à sua frente, todos de copo na mão, uns com labisas, outros com copos mais pequenos, todos muito sérios e tão concentrados no cante que nem me veem.

Gosto muito de ouvir o que começa, o ponto. Ele está com um ar muito sério, canta com muito preceito, todos os outros a ouvi-lo, até que ele acaba. Quase antes de ele acabar começa o alto, tem uma voz diferente, parece mais voz de mulher. Fica tudo calado a ouvi-lo e, de repente, entram todos a cantar ao mesmo tempo. Até parece um trovão bonito que faz tremer as paredes da taberna! Alguns ficam com as veias do pescoço e da testa muito inchadas, parece que vão explodir. Eu acho que quando for grande também vou cantar assim… Fazer o alto, é bonito, sinto o cante como se fosse como as andorinhas que voam para baixo, para cima, dão grandes voltas e até parece que vão cair mas continuam com toda a calma, como se voar e cantar fossem as coisas mais fáceis deste mundo.

Quando a cantiga acaba há outro que começa, no mesmo estilo, uma quadra nova e depois volta a entrar o alto e os outros caem-lhe em cima, todos ao mesmo tempo. Às vezes parece-me que eles estão ao desafio, como na bola, todos querem ser melhores! Alguns altos ficam mais tempo a cantar sozinhos, lá no alto, como as corujas, mas depois os outros voltam a entrar mas a voz dele ouve-se sempre, lá em cima. Quando acabam de cantar dizem coisas engraçadas como “arre macho”, mas a verdade é que não está macho nenhum na taberna! Outras vezes cospem para o chão e bebem mais um copo, dizem que o cantar seca a garganta.


O Cante Alentejano
Desidério Lucas do Ó

O Cante Alentejano

Quando passo em revista a minha já longa vida e procuro encontrar um fio condutor, uma motivação constante que me acompanhou ao longo dos tempos, tropeço, naturalmente, no êxtase que paixões e amores pontualmente provocaram.
Contudo, a paixão mais constante, aquela que nunca esmoreceu e que até hoje se mantem, foi e é o cante, o cante alentejano.
Foi o cante que me deu alma, me deu vida, me insuflou daquele sentimento de pertença e de constância que faz crescer raízes e solidificar afetos.
Foi o cante que ouvi nas tabernas vizinhas da nossa casa que me transportou para o belo indescritível que tanto pode ser o voar sereno das andorinhas ao fim da tarde como a solenidade bruta do trovão inesperado que quebra o silêncio da noite.
O silêncio daquela noite, na Cuba, quando um grupo de homens descia lentamente a rua entoando uma moda com a qual elogiavam as conquistas da revolução e a derrota da reação.
A alegria dos bailes dos mastros, quando se cantava ao despique, tentando conquistar as moças com o improviso daquela quadra com a qual se queria mandar abaixo a resistência feita de cheiro a mentrastes e rosmaninho.
E a indescritível sensação de estar ali, de pé, segurando em cada braço o braço de um amigo, sentindo o pulsar da sua respiração, da sua excitação no momento da entrada, do requebro que conseguia atingir quando todos se calavam e ele, lá no alto, exibia o seu trinado solitário e vigoroso.
E a sensação de um enorme orgulho, quando o ponto começara no tom certo, o alto entrara bem e com preceito e o coro respondera adequadamente, forrando o cante com o enorme trovão das muitas vozes, em uníssono.
Terminava-se com um enorme alívio, com alegria, oleavam-se as gargantas com mais uma pinga e a festa continuava.
Continuava e continuou, mesmo nos tempos das vacas magras, quando quase já se não ouvia cantar nas tabernas e quando quem dava o mote era olhado com suspeição pelos arautos da extinção, que auguravam o fim de uma velha tradição que definhava.
Não definhou, voltou com toda a força, com novas gerações que entraram para a casa comum com mais força, mais vigor, mais fantasia.
É nesta casa que estamos, é esta a nossa casa.

Desidério Lucas do Ó
São Brás de Alportel, 2.6.2019