Daniela Graça

Espelho Cinemático

Daniela Graça

Se Esta Rua Falasse (2018)

O realizador Barry Jenkins alcançou furor internacional com o filme Moonlight (2016), uma história que tem início nos anos 80 e segue as vivências de um jovem afro-americano gay e a discriminação de que foi alvo até se tornar adulto. Moonlight valeu a Jenkins várias nomeações de prémios incluindo os prestigiados Óscares para Melhor Realizador, Melhor Argumento Adaptado e Melhor Filme. Jenkins levou para casa as estatuetas de ouro das últimas duas categorias.

Não é um exagero afirmar que Moonlight é um dos filmes que mais marcou a década de 2010. Barry Jenkins sucedeu Moonlight com o filme Se Esta Rua Falasse (título original: If Beale Street Could Talk) que estreou em 2018. Se Esta Rua Falasse é a terceira longa-metragem de Jenkins e trata-se da adaptação do “romance-manifesto” homónimo do romancista, poeta, dramaturgo, crítico social e ativista James Baldwin. Baldwin foi uma das vozes mais fortes na defesa dos direitos dos afro-americanos e homossexuais, tendo dedicado a sua vida e obra à luta contra a discriminação social.

Se Esta Rua Falasse conta a história de um casal que é tragicamente separado devido a um sistema preconceituoso. Tish (Kiki Layne) e Fonny (Stephan James) conhecem-se desde crianças, crescem juntos, aproximam-se e, por fim, apaixonam-se, acontece de forma natural, quase despercebida, como se simplesmente estivesse predestinado. Planeiam um futuro juntos com uma casa só deles e repleta com as obras de Fonny, que sonha em ser escultor. Mas este futuro é lhes roubado quando Fonny é preso injustamente devido a uma acusação de violação. Quando Tish descobre que está grávida decide que tem de encontrar um meio de provar a inocência de Fonny e garantir a sua liberdade para que ele possa ver o filho crescer, para que possam ser uma família juntos. As famílias do jovem casal embarcam então numa difícil e extenuante jornada para provar a inocência de Fonny, uma tarefa que, em última instância, acaba por se provar impossível. Fonny continua injustamente preso e é engolido pelo sistema prisional e judicial como tantos outros.

A história destes jovens acontece na década de 70 em Beale Street em New York, mas tanto poderia ter acontecido em New Orleans, Louisiana ou em Jackson, Mississippi. “Todos os negros da América nasceram em Beale Street” é a afirmação que inicia o filme. Intitular Se Esta Rua Falasse como um “romance-manifesto” é a descrição que faz mais justiça à história. É uma história de amor entre dois jovens sonhadores, mas é também um retrato fiel do preconceito que existe desde do nascimento dos Estados Unidos da América para com a comunidade afro-americana.  Preconceito este de tal forma cravado nas fundações do país que para além das ramificações vivenciadas diariamente se traduz ainda num sistema judicial injusto, discriminatório, incompetente e violento.

Filmes que relatam e atacam a temática do preconceito social têm sido favoritos nos circuitos de festivais nas últimas décadas como, por exemplo, 12 Anos Escravo (2013) ou Green Book – Um Guia Para a Vida (2018). Porém, as longa-metragens de Jenkins diferenciam-se de filmes como os referenciados anteriormente. Para além do cunho de autor único de Jenkins, alcançado através da construção de um estilo visual distinguível e caracterizado pela ênfase em cores ricas e quentes, a pouca profundidade de campo e o posicionamento das faces dos atores a centímetros da câmara que criam planos profundamente íntimos, acresce ainda a mestria do realizador na criação de narrativas incrivelmente sensíveis, ternurentas e vulneráveis. É esta ternura que distingue os filmes de Barry Jenkins, é a naturalidade e intimidade dos momentos simples e felizes que em contraste com o preconceito perpetuado incessantemente tornam as histórias tão comoventes. Jenkins dota os seus filmes de uma sensibilidade única e tem, desta forma, vindo a estabelecer-se como um dos cineastas norte-americanos mais talentosos da sua geração.

Se Esta Rua Falasse esteve nomeado para três Óscares, mas venceu apenas na categoria de Melhor Atriz Secundária com a atriz Regina King no papel de mãe de Tish. Para além da mestria demonstrada por Jenkins no seu ofício é importante ressaltar a qualidade dos desempenhos do elenco principal e o contributo essencial do compositor Nicholas Britell, com quem Jenkins colaborou previamente em Moonlight (2016), para o sucesso do filme.

Se Esta Rua Falasse é como uma canção de blues, é doce e amarga; é sensual, sensível e violenta; é sobre a alegria do amor e a tristeza, pautada por momentos fervorosos de raiva, que um sistema impiedoso e cruel inflige; é sobre escolher ter esperança quando tudo o resto falha. Se Esta Rua Falasse continua a ser tão relevante hoje como foi em 1974 quando James Baldwin escreveu a história. Os tempos mudam, o sistema evoluí, o preconceito assume novas formas e o mal existente na sociedade continua a afetar várias comunidades em diversas formas. São histórias que são necessárias recordar e discutir.

Se Esta Rua Falasse encontra-se disponível para visualização no catálogo da Netflix até dia 20 de abril.

Classificação: ★★★★★