Vultos da Cultura Portuguesa

Jaime Cortesão

Jaime Zuzarte Cortesão nasce em Ançã, distrito de Coimbra, a 29 de Abril de 1884, filho do filólogo António Augusto Cortesão. Estuda em Coimbra, Porto e Lisboa. Em 1909 forma-se em Medicina e em 1912 é nomeado professor de Literatura num liceu do Porto, onde se mantém até à sua eleição para deputado, em 1915. Juntamente com Teixeira de Pascoaes, participa, a partir de 1910, no movimento saído da revista "A Águia", ampliado depois pelo grupo "Renascença Portuguesa". Na I Guerra Mundial faz a campanha da Flandres como voluntário e vem a ser condecorado com a Cruz de Guerra. Em 1919 é nomeado director da Biblioteca Nacional, cargo que mantém até 1927. A sua obra histórica tem início em 1922, ano em que começa a colaborar com Carlos Malheiro Dias na "História da Colonização Portuguesa do Brasil". É nesse ano que se desloca ao Brasil, integrando a missão literária que acompanha o presidente da República António José de Almeida. É um dos fundadores da "Seara Nova" e a sua oposição ao regime saído do golpe militar de 1926 (o Estado Novo) obriga-o a um longo exílio por terras de Espanha, França, Bélgica e Inglaterra, onde realiza um notável trabalho de investigação histórica. Em 1940 fixa-se no Brasil, onde desenvolve intensa e distinta actividade no campo das letras e das ciências, como poeta, dramaturgo, ensaísta e historiador. Regressa a Portugal em 1957 mas a sua actividade política, que nunca abandonou no exílio, leva-o à prisão em 1958, ano em que é eleito presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores. Quando morre, em Lisboa, a 14 de Agosto de 1960, é já considerado um dos vultos maiores da cultura portuguesa.

A Plasticidade amorável do Português
Jaime Cortesão

Os Portugueses, e em maior ou menor grau os demais povos ribeirinhos da Península, diferem, sim, dos Hispanos do planalto central naquilo a que chamamos plasticidade amorável. Aí devemos buscar a raiz de todas as atenuantes que Oliveira Martins encontrava no português à afirmativa do génio castelhano.

Plasticidade amorável dizemos nós, porque dá ao espírito, exaltado pelo amor, uma capacidade eminentemente compreensiva, tanto para comunicar como para aprender.

Oliveira Martins viu esta virtude apenas pelo seu reverso, isto é, na facilidade com que recebemos e assimilamos as qualidades alheias. Mas a plasticidade portuguesa, se é capaz de descobrir e assimilar nas culturas alheias a parte nova de humanidade, para enriquecer-se com ela, estabelece assim a condição primeira para transmitir, por sua vez, a humanidade própria. Povo algum de entre todos os que levaram a sua cultura a outros continentes imprimiu influências tão vivas nos outros povos. Na África, uma cultura artística tão evoluída, com a de Benim; na Ásia, sociedades, tão diferenciadas como a japonesa; por toda a parte os povos mais cultos, como o chinês, ou os menos cultos, como os ameríndios, aí estão para atestar na arte, nos costumes, nas técnicas, na língua, em todas as formas da cultura, a marca viva das influências portuguesas.

O segredo dessa plasticidade, juntamente irradiante e receptiva, plasmável, esconde-se na riqueza amorosa do português, no seu dom de simpatia e comunicação cordial que Ihe permite dar e receber, sem alterar o fundo próprio. A plasticidade, que mergulha as raízes no amor, não diminui, mas acrescenta. Nesse caso, o carácter pode conservar-se na sua pureza íntegra; e, se guarda em si, como num paládio, alguma virtude ou verdade fundamental, adquire a possibilidade de a comunicar ao próximo ou de a enriquecer com novas aquisições. A hombridade seca e inexorável leva ao inquisidor; a hombridade plástica e amorável ao apóstolo. Sem esta última, fora impossível compreender-se a expansão portuguesa, e mais que em nenhures na América.

Primeiro e mais que nenhum outro povo, o português se habituou à variedade das zonas climáticas e das raças e costumes novos. Mas recebeu e transmitiu valores. Se algum dos povos colonizadores se extremou na atitude cristã com os outros povos, esse foi o português. Por uma equação de amor, universalizou, na medida em que foi universalizado. Mas manteve por toda a parte e contra tudo e todos o código da sua lei nacional ou os princípios da sua fé religiosa.

Entre a hombridade rígida do Hispano e a hombridade plástica do Português, a explicar a segunda, medeia a inquietação. Comum a todos os povos ibéricos de raiz semita, ela ganha uma tonalidade específica no Português. A inquietação portuguesa, predominantemente extrovertida, é juntamente mais pragmática e mais sequiosa de espaço. O primeiro homem que deu a volta ao mundo tinha que ser, e foi português. [...]

Eis o tipo do português, considerado como um padrão ideal, moldado pela terra, o género de vida e as andanças históricas, e visto nos seus traços mais fundos-hombridade, plasticidade e inquietação-módulo resistente do seu carácter, que por várias formas encarnou em símbolos literários, para de novo reverter à vida, e, por meio deles, influí-la.

Se analisarmos ainda hoje qualquer português, nele encontramos, em combinações diversas aquelas virtudes, aliadas por vezes aos defeitos das virtudes, quando não estes exclusivamente. Como as moedas gastas pelo tempo e o manuseio, cuja efígie, outrora de nítido perfil, hoje mal se reconhece, e, quando o metal é vil, se afoga no verdete, assim, nos decaídos lusos, mais ou menos a custo se enxerga o lusíada da idade heróica. Às vezes é um traço apenas ou um resto de traço. Mas esse basta ao observador experimentado para reconhecê-lo e reconstituir-Ihe as ascendências.

Ficou-lhes a quase todos do convívio secular com povos peregrinos a cordialidade compreensiva, a fraternidade pronta e a facilidade de assimilar o exótico. Em muitos, sob esta casca dúctil, chega-se facilmente ao rijo cerne da hombridade, que se traduz em inteireza de carácter, tenacidade e fidelidade a todas as tradições da terra e de uma cultura multissecular.

Outros, e são os que mais se aproximam do padrão ideal, aliam em proporções iguais aquele casticismo de raiz ao cosmopolitismo de floração, nas tendências e nos ideais. Nesta união dos contrários--síntese das duas consequências da hombridade e da plasticidade, reside o q?id diferencial que distingue o português do homem da meseta, mas o aproxima do catalão, do galego, do andaluz ou do basco.

A lógica desse protótipo reveste a forma de um aparente paradoxo: o português é tanto mais nacionalizado, quanto mais cosmopolita. Descende daqueles tipos das comédias de Jorge Ferreira de Vasconcelos, cujo casticismo se traduzia numa sabedoria e numa linguagem universalizada pelo mar.

A nosso ver, todo e qualquer programa político dum Portugal futuro deveria obedecer conjuntamente a este complexo, nas suas diferenciações e nas suas semelhanças. Deveria igualmente ter em vista os defeitos das qualidades.

A hombridade ibérica degenera, com frequência, na exacerbação anárquica do eu, no individualismo feroz, na
indisciplina, na soberba e no ponto de honra, na inveja e na maledicência, vícios mais comuns aos habitantes da meseta, menos plásticos, mas que estão longe de ser alheios aos Portugueses. Inveja e maledicência já eram denunciadas, ao longo de todo o século XVI, por Duarte Pacheco, D. João de Castro, ou Mendes Pinto, como vícios essencialmente Portugueses. Unamuno, em nossos dias, alargava, com amargo acento, este juízo aos Espanhóis.

A hombridade pode conduzir igualmente à intolerância fanática e afirmar-se com violência e crueldade. O carácter terrivelmente afirmativo do ibérico tinha que levá-lo às exacerbações inumanas da Inquisição. Esse espírito permanece e permanecerá latente, como vírus endémico em todas as nações ibéricas. E o reverso fatal de uma das suas maiores virtudes.

Se a hombridade é a fonte dos maiores defeitos do ibérico, e, em especial, do castelhano, seu representante mais directo, a plasticidade degenera no português, em proporção maior, nos vícios correspondentes: a maleabilidade levada até à abjecção, à hipocrisia e ao conformismo sem limites Foi por isso também que a Inquisição fez mais estragos nas almas em Portugal do que na Espanha; e o fanatismo aliado à baixeza pesam ainda hoje como a pior das heranças e das ameaças sobre os Portugueses.