Daniela Graça

Espelho Cinemático

Daniela Graça

Farta de Mim Mesma (2022)

A comédia negra norueguesa Farta de Mim Mesma (título original: Syk Pike) foi apresentada na secção Un Certain Regard do Festival de Cannes no ano passado e, mais recentemente, passou também pelo Festival IndieLisboa. Desde o dia 1 de junho, Farta de Mim Mesma passou a fazer parte do catálogo da plataforma de streaming Filmin em oferta exclusiva.

Farta de Mim Mesma, da autoria de Kristoffer Borgli, segue a espiral autodestrutiva de Signe (Kristine Kujath Thor), uma empregada de mesa narcisista em busca de fama, que se sente ameaçada pelo sucesso súbito do namorado e artista Thomas (Eirik Sæther).

 A trama inicia-se com Signe a vangloriar-se pelo heroísmo de ter ajudado uma senhora que tinha sido mordida por um cão. Durante várias semanas repete a mesma história vezes sem conta — como um disco riscado — para grande aborrecimento dos amigos. Entretanto, Thomas vai expor a sua “arte” — cadeiras que rouba de lojas para fazer peças artísticas — numa galeria e Signe ressente-o por ter mais atenção do que ela. O relacionamento de Signe e Thomas é complicado, competitivo e corrosivo: ambos são egocêntricos que não suportam não ser o centro da atenção e que constantemente menosprezam os feitos do outro à frente dos amigos. E para piorar a situação, Signe é uma mentirosa compulsiva que enlaça tudo e todos numa teia convoluta de fabricações.

No entanto, as mentiras que Signe inventa no momento (como ser alérgica a frutos secos e, consequentemente, desmaiar no jantar de celebração da exposição de Thomas) não saciam o seu ego. Ela começa a fantasiar, e planificar em detalhe, como ser a vítima perfeita que todos irão adorar. Depois de uma primeira tentativa falhada de instigar um cão a mordê-la, Signe opta por ingerir comprimidos russos que causam erupções cutâneas gravíssimas se consumidos em demasia. O seu desejo torna-se realidade e ela acaba no hospital com a cara completamente desfigurada, onde se recusa a ser testada pelos médicos de forma a encobrir a verdadeira causa da doença.

Signe levou o corpo até ao limite e, mesmo assim, continua a não estar satisfeita com a quantidade de atenção que recebeu dos amigos. Ela sonha acordada em estar em programas de televisão, capas de jornais e sessões fotográficas — até com o próprio funeral, em que todos lamentam chorosamente a sua morte, ela sonha — porque se crê merecedora de toda essa atenção. A pergunta que Farta de Mim Mesma coloca é até que ponto está Signe disposta a ir por fama? Será que tudo vale a pena desde que obtenha o resultado esperado?

Farta de Mim Mesma foi realizado, escrito e editado por Kristoffer Borgli que provou ser um autor com aptidão para explorar e ridicularizar a hediondez de personalidades narcisistas.  Por sua vez, a composição harmoniosa e elegante da cinematografia de Benjamin Loeb — cujos créditos anteriores incluem Mandy (2018), Pieces of a Woman (2020) e After Yang (2021) — contrasta visualmente com a fealdade narrativa dos acontecimentos de uma forma peculiarmente intrigante.

 Farta de Mim Mesma é uma sátira desconfortante que examina a toxicidade de personalidades egocêntricas na era da fama instantânea (e pouco duradoura) das redes sociais e meios de comunicação. É um filme que aborda a falta de escrúpulos em nome da fama, a futilidade da inclusividade em marketing e a vaidade individual. Tanto Thomas quanto Signe são pessoas medíocres desprovidas de talento, mas isso não os impede de se considerarem merecedores de reconhecimento, apesar de não terem nada de valor a oferecer e terem, desta forma, de recorrer ao choque para terem atenção. O humor e o horror do filme recaem nos exageros e caprichos frutos da megalomania das personagens.

O filme deixa claro que Signe já era uma pessoa doente muito antes de ter ficado fisicamente deformada por vontade própria. O ego exacerbado de Signe é como um buraco negro que consome tudo em seu redor sem pudor. Signe é uma personagem fictícia exagerada para propósitos satíricos, mas a obsessão destrutiva por atenção é real e está presente em diferentes graus na nossa sociedade. Farta de Mim Mesma é uma excelente sátira a não perder.

Classificação: ★★★★ (4/5)