Insólita Viagem


A dois passos do paraíso
José Manuel Simões

Naquela manhã de 1 de Janeiro de 1994 acordei com uma irresistível vontade de partir. Estava em casa de um amigo médico em Olinda, Pernambuco, Brasil, a passagem de ano havia sido fantástica mas algo me dizia que tinha que ir embora. Deixei um bilhete ao meu amigo a dizer “vou ao Deus dará” e apanhei um autocarro até João Pessoa, na Paraíba, onde, devido à data festiva, não encontrei lugar para pernoitar. Nisto, vejo no mapa da região o nome Baía da Traição, recordando-me de uma aldeia indígena ali perto por onde tinha passado meia dúzia de anos antes, com direito a umas fotos rápidas e medo de que os índios fossem hostis. Foi para lá que fui. Na manhã seguinte, depois de ter constatado que os donos da pousada tinham sido assaltados, parto à redescoberta dessa tribo do Nordeste brasileiro. A pé, pela praia fora, sem mais ninguém, cheguei a um lugar em que a falésia se rompia em vários caminhos, tomei uns banhos de mar e subi. Do cimo do morro vejo aproximar-se um ultraleve demasiado baixo, aparentemente desgovernado, a menos de 100 metros de mim é empurrado pelo vento e despenha-se. “Ó meu Deus, o que é que aconteceu”, pensei, em pânico. “Não há nada que eu possa fazer. O melhor é ir pedir socorro, tentar arranjar um transporte que os conduza a um hospital”. Deixei a mochila e os chinelos e, com os pés a ferver na terra quente corri até à aldeia onde encontrei um grupo de índios que não entendiam a minha língua e aflição e a todas as minhas palavras respondiam com um sonoro “é” acompanhado de sorrisos. Em desespero, enxergo um índio a cavalo, peço-lhe com firmeza que vá até à Baía da Traição chamar um carro para socorrer os sinistrados, finalmente consegui fazer passar a mensagem. Enquanto o cavalo galopava toda a aldeia se dirigiu para o local do acidente. Encontrámos dois homens que definhavam a olhos vistos, um com fraturas expostas, sangue a jorrar, o outro com uma cabeça três vezes maior que o normal. Aparentemente salvos da agonia e da morte lenta, vejo-os partir num táxi enquanto me afastava a chorar com o peso das emoções. Já fora da tribo chegaram uns fulanos junto a mim, “amigo, vamos comemorar”, comemorar o quê, “foi um milagre estar ali naquela hora. Você salvou nossos colegas”. No dia seguinte voltei à Aldeia Galego dos índios potyguara e fui recebido como herói, voltando quase todos os anos àquele lugar, um dos mais bonitos do Mundo. Tinham passado oito anos desde o insólito acontecimento da queda do ultraleve e, concluído que tinha o mestrado em comunicação e jornalismo, decido ir fazer a minha tese de doutoramento em etnomusicologia sobre os ritmos dos potyguara, acabando por casar na aldeia com uma descendente de índios e fazer a casa precisamente no local onde o avião caiu. Mais recentemente fui conduzir uma reportagem jornalística para a televisão sobre esta reserva indígena que é um dos últimos paraísos de homem e, para dar credibilidade ao trabalho, fui procurar os acidentados do ultraleve. Ao contrário do que se dizia na aldeia, estavam ambos vivos. Um deles, em lágrimas, agradeceu, a Deus e a mim, por estar ali naquele momento, enfatizando que me devia a vida. Na reportagem, retratámos essa história em paralelo a um modus vivendi que mantém traços que remontam a séculos antes da chegada do colonizador, com os seus pagés, feiticeiros, caciques, curandeiros e todo um território reserva e património natural da humanidade que abriga espécies em vias de extinção, dando a conhecer a Portugal índios que dançam em círculo e rezam aos deuses da natureza em comoventes preces numa língua secular, o velho tupi. Deus, ou Tupã, como eles enfatizam em olhos elevados aos céus, parece ter-lhes respondido à vontade de se agarrarem às raízes de uma terra que deve ser sagrada. Uma terra que se não é o paraíso está a menos de dois passos dele.