Os novos medievais
Margarida Vale
A fundação de Cluny
- Partilhar 29/11/2021
A fundação da abadia de Cluny vem na
sequência de uma reforma promulgada por
Bento de Aniano, que foi um dos primeiros a
preconizar a aplicação rígida da Regra de S.
Bento nos mosteiros do ocidente. O abade
será o chefe de uma grande família, mesmo
que sejam apenas monges. O seu exemplo foi
seguido e rapidamente centenas de casas
cresceram no resto da Europa, ficando todas
elas na dependência desta. O abade é nomeado
pelo seu homólogo de Cluny e têm que seguir
as mesmas normas e regras, acompanhando os
capítulos que têm lugar na casa mãe.
A igreja é uma instituição que acompanha os
séculos, segue-os a par e passo e, nesse
sentido, tem necessidade de se adaptar de
modo a estar pronta para colmatar as
necessidades do foro espiritual que revelam
a evolução das mesmas sociedades. Neste
contexto, em 909, o Duque da Aquitânia,
Guilherme, o Pio, decide fundar uma abadia,
no fundo de um vale escuro, o vale de Cluny.
Esta nova fundação irá modificar o sistema
que estava imposto.
Em finais do
século X, a igreja atravessa uma crise de
grande profundidade. Tudo começa com a
escolha dos abades e dos bispos dos grandes
mosteiros que são recolhidos entre as
famílias importantes. Assim sendo, a
tentação dos bens e do luxo, bem como de uma
vida desafogada, é seguida por muitos que
anseiam por ser senhores de propriedades,
cobertos de poder e de riqueza , esquecendo
a sua missão de salvação de um povo cristão
que se encontra perdido.
Os cargos
são negociados e vendidos como se fossem
bens materiais com capacidade de produzir
riqueza e domínio económico, Na verdade, as
abadias geram muito dinheiro e prestígio,
levando alguns a entrarem em colapso e
outros a enriquecerem com facilidade. A
missão espiritual ficava para segundo plano,
deixando os crentes desprotegidos e
desamparados. A igreja funcionava como uma
paternidade para um povo que necessitava de
apoios, em todos os aspectos da vida, quer
espiritual ou práctica.
Contudo
continuam a existir lugares onde o saber e a
vida digna ainda têm lugar. A oração e a
caridade eram praticados em lugares que não
se tinham conspurcado nem deixado ofuscar
pelas demoníacas negociatas que eram feitas
em nome de Deus. Aliada a esta postura há
ainda transmissão de saber e a tão apregoada
salvação da alma. Poitiers e Lorena
preservam a sua pureza e serão o palco das
mudanças a ser operadas nesta época. O
curioso é que os poderosos, os que traficam
bens e dignidades eclesiásticas, sentem que
precisam de apoio e ajuda.
Em França,
desde o início do século X que as doações
aumentam, mesmo que as famílias nobres
possam ficar em risco. O importante é ter
quem reze por eles e que a sua alma siga
para o caminho correcto. É neste contexto
que os bens se tornam insuficientes e os
donativos incluem um filho que entre no
mosteiro como oblata ou, posteriormente,
quando sentem o tal chamamento, mesmo que
seja tardio, ingressam nessas casas
religiosas onde terminam os seus dias em
oração, para redenção dos pecados cometidos.
Guilherme de Aquitânia governava um
território que ia da Catalunha ao Loire e do
Atlântico aos montes do Mâconnais. Convicto
de que a forte generosidade o iria levar ao
reino da salvação, apadrinha monges e
oferece benefícios. Com a carta da fundação,
o Duque age de forma a que o mosteiro possa
viver nas condições materiais e morais que
tornem a sua existência agradável a Deus.
Nada foi deixado ao acaso e a escolha do
primeiro chefe recaiu em Bernon, um dos
membros de uma família nobre e rica da
Borgonha. Na verdade, este será um homem de
garra que ficará cerca de três décadas à
frente do mosteiro. A sua formação e o seu
passado em Autun, deram frutos poderosos.
A independência económica é reforçada
pelas sucessivas doações dos que se viam
preocupados com a sua situação após a morte.
Para que a situação fosse ainda mais clara,
seria necessária autonomia e, neste
contexto, a libertação de Mâcon é garantida
em 909, dependendo apenas da Santa Sé. O
abade de Cluny é independente e livre de
estabelecer as suas regras. Os monges desta
casa em vez de dividirem o seu tempo entre o
trabalho e a oração, tal como era mencionado
na regra de S. Bento, rezavam, celebravam
ofícios esplêndidos e intermináveis,
cantavam a grandeza de Deus em edifícios que
se tornariam os mais belos de todos.
Mas Cluny iria sofrer dos mesmos males que
tanto apontava. O tempo teve a tarefa de
adulterar a independência com luxo e as
críticas agigantaram-se. O mais conhecido,
Bernardo de Claraval, apontava o caminho
perdido e as múltiplas formas de esquecer o
propósito inicial. De miseráveis e
andrajosos, passaram a luminosidade de estar
e de se mostrar às claras, em posições que
em nada os dignificavam. A independência que
havia conquistado era mal vista. O papa
Calisto II abandonou-os à sua sorte,
deixando-os à mercê de vis ataques dos seus
pares e dos sarracenos.
A revolução
Francesa foi o golpe final. Tudo foi
destruído, os livros queimados, as
instalações derrubadas e o local ficou
votado ao abandono. O terreno foi vendido e
somente no século XX, se deu uma
reconstrução parcial do edifício. Em 2007, a
abadia foi consagrada como Património
Europeu. O passado ainda continua vivo mesmo
que tenha renascido das cinzas da falta de
conhecimento e da ausência de memória de
muitos.
Hoje a religião ocupa um
lugar mais escondido na sociedade mas ainda
com algum relevo. Certas normas deixaram de
ser conhecidas e outras sofreram
branqueamento de maneira a acompanhar os
tempos. O saber foi-se perdendo e o lado
espiritual caiu em desuso. O materialismo
ganhou terreno e passou a ser a nova forma
de estar. Ter e exibir são mais valias que
substituem os valores e o poder persiste com
a sua tarefa de corromper.
Os livros
continuam a existir mas são olhados com
muito desprezo. Ler é aborrecido, as linhas
fogem e o conteúdo esvaziou-se. Tudo ficou
vazio. Pensar pode ser perigoso e entender a
mensagem escrita exige alguma contenção. A
palavra do pregador deve ser escutada com
cuidado. Fazer o que ele diz não é igual ao
que ele faz. Incongruências que recordam o
passado e que tendem a ser continuadas.
O passar dos séculos não alterou os
motes de cada um. Há necessidade de haver um
chefe, alguém que diga o que deve ser feito.
O povo precisa de ser levado. O ser humano
está oco de humanismo e a sensibilidade está
colocada em risco. Ser pessoa é tarefa longa
e incompleta, onde os altos e os baixos
ganham dimensão maior.
A seita que
agora tudo regula é o dinheiro, esse vil
metal que angaria milhões de seguidores,
cegos de paixão e fé, alienados com as suas
promessas de felicidade. O céu é o carro
topo de gama, a casa tecnológica, o
telemóvel de última geração e as roupas
ditadas pela moda. A alma morreu. O resto é
apenas distração, sons que batem em paredes
e regressam com sons que endoidecem e
retiram a humanidade que residia dentro de
cada um.
- n.31 • dezembro 2021