Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale

A fundação de Cluny

A fundação da abadia de Cluny vem na sequência de uma reforma promulgada por Bento de Aniano, que foi um dos primeiros a preconizar a aplicação rígida da Regra de S. Bento nos mosteiros do ocidente. O abade será o chefe de uma grande família, mesmo que sejam apenas monges. O seu exemplo foi seguido e rapidamente centenas de casas cresceram no resto da Europa, ficando todas elas na dependência desta. O abade é nomeado pelo seu homólogo de Cluny e têm que seguir as mesmas normas e regras, acompanhando os capítulos que têm lugar na casa mãe.

A igreja é uma instituição que acompanha os séculos, segue-os a par e passo e, nesse sentido, tem necessidade de se adaptar de modo a estar pronta para colmatar as necessidades do foro espiritual que revelam a evolução das mesmas sociedades. Neste contexto, em 909, o Duque da Aquitânia, Guilherme, o Pio, decide fundar uma abadia, no fundo de um vale escuro, o vale de Cluny. Esta nova fundação irá modificar o sistema que estava imposto.

Em finais do século X, a igreja atravessa uma crise de grande profundidade. Tudo começa com a escolha dos abades e dos bispos dos grandes mosteiros que são recolhidos entre as famílias importantes. Assim sendo, a tentação dos bens e do luxo, bem como de uma vida desafogada, é seguida por muitos que anseiam por ser senhores de propriedades, cobertos de poder e de riqueza , esquecendo a sua missão de salvação de um povo cristão que se encontra perdido.

Os cargos são negociados e vendidos como se fossem bens materiais com capacidade de produzir riqueza e domínio económico, Na verdade, as abadias geram muito dinheiro e prestígio, levando alguns a entrarem em colapso e outros a enriquecerem com facilidade. A missão espiritual ficava para segundo plano, deixando os crentes desprotegidos e desamparados. A igreja funcionava como uma paternidade para um povo que necessitava de apoios, em todos os aspectos da vida, quer espiritual ou práctica.

Contudo continuam a existir lugares onde o saber e a vida digna ainda têm lugar. A oração e a caridade eram praticados em lugares que não se tinham conspurcado nem deixado ofuscar pelas demoníacas negociatas que eram feitas em nome de Deus. Aliada a esta postura há ainda transmissão de saber e a tão apregoada salvação da alma. Poitiers e Lorena preservam a sua pureza e serão o palco das mudanças a ser operadas nesta época. O curioso é que os poderosos, os que traficam bens e dignidades eclesiásticas, sentem que precisam de apoio e ajuda.

Em França, desde o início do século X que as doações aumentam, mesmo que as famílias nobres possam ficar em risco. O importante é ter quem reze por eles e que a sua alma siga para o caminho correcto. É neste contexto que os bens se tornam insuficientes e os donativos incluem um filho que entre no mosteiro como oblata ou, posteriormente, quando sentem o tal chamamento, mesmo que seja tardio, ingressam nessas casas religiosas onde terminam os seus dias em oração, para redenção dos pecados cometidos.

Guilherme de Aquitânia governava um território que ia da Catalunha ao Loire e do Atlântico aos montes do Mâconnais. Convicto de que a forte generosidade o iria levar ao reino da salvação, apadrinha monges e oferece benefícios. Com a carta da fundação, o Duque age de forma a que o mosteiro possa viver nas condições materiais e morais que tornem a sua existência agradável a Deus. Nada foi deixado ao acaso e a escolha do primeiro chefe recaiu em Bernon, um dos membros de uma família nobre e rica da Borgonha. Na verdade, este será um homem de garra que ficará cerca de três décadas à frente do mosteiro. A sua formação e o seu passado em Autun, deram frutos poderosos.

A independência económica é reforçada pelas sucessivas doações dos que se viam preocupados com a sua situação após a morte. Para que a situação fosse ainda mais clara, seria necessária autonomia e, neste contexto, a libertação de Mâcon é garantida em 909, dependendo apenas da Santa Sé. O abade de Cluny é independente e livre de estabelecer as suas regras. Os monges desta casa em vez de dividirem o seu tempo entre o trabalho e a oração, tal como era mencionado na regra de S. Bento, rezavam, celebravam ofícios esplêndidos e intermináveis, cantavam a grandeza de Deus em edifícios que se tornariam os mais belos de todos.

Mas Cluny iria sofrer dos mesmos males que tanto apontava. O tempo teve a tarefa de adulterar a independência com luxo e as críticas agigantaram-se. O mais conhecido, Bernardo de Claraval, apontava o caminho perdido e as múltiplas formas de esquecer o propósito inicial. De miseráveis e andrajosos, passaram a luminosidade de estar e de se mostrar às claras, em posições que em nada os dignificavam. A independência que havia conquistado era mal vista. O papa Calisto II abandonou-os à sua sorte, deixando-os à mercê de vis ataques dos seus pares e dos sarracenos.

A revolução Francesa foi o golpe final. Tudo foi destruído, os livros queimados, as instalações derrubadas e o local ficou votado ao abandono. O terreno foi vendido e somente no século XX, se deu uma reconstrução parcial do edifício. Em 2007, a abadia foi consagrada como Património Europeu. O passado ainda continua vivo mesmo que tenha renascido das cinzas da falta de conhecimento e da ausência de memória de muitos.

Hoje a religião ocupa um lugar mais escondido na sociedade mas ainda com algum relevo. Certas normas deixaram de ser conhecidas e outras sofreram branqueamento de maneira a acompanhar os tempos. O saber foi-se perdendo e o lado espiritual caiu em desuso. O materialismo ganhou terreno e passou a ser a nova forma de estar. Ter e exibir são mais valias que substituem os valores e o poder persiste com a sua tarefa de corromper.

Os livros continuam a existir mas são olhados com muito desprezo. Ler é aborrecido, as linhas fogem e o conteúdo esvaziou-se. Tudo ficou vazio. Pensar pode ser perigoso e entender a mensagem escrita exige alguma contenção. A palavra do pregador deve ser escutada com cuidado. Fazer o que ele diz não é igual ao que ele faz. Incongruências que recordam o passado e que tendem a ser continuadas.

O passar dos séculos não alterou os motes de cada um. Há necessidade de haver um chefe, alguém que diga o que deve ser feito. O povo precisa de ser levado. O ser humano está oco de humanismo e a sensibilidade está colocada em risco. Ser pessoa é tarefa longa e incompleta, onde os altos e os baixos ganham dimensão maior.

A seita que agora tudo regula é o dinheiro, esse vil metal que angaria milhões de seguidores, cegos de paixão e fé, alienados com as suas promessas de felicidade. O céu é o carro topo de gama, a casa tecnológica, o telemóvel de última geração e as roupas ditadas pela moda. A alma morreu. O resto é apenas distração, sons que batem em paredes e regressam com sons que endoidecem e retiram a humanidade que residia dentro de cada um.