José Maria de Oliveira

Letras e Traços

José Maria de Oliveira

OS LADRÕES SOLARES

Quando vim para o Algarve, há muitos anos, o Sol era ainda uma bênção democrática dos céus, que entrava casas adentro, ricas ou pobres, tudo inundando com a sua bênção purificadora de luz e calor.
O Algarve era (e ainda é, sobretudo no interior profundo) um paraíso soalheiro para os que cá vivem ou para aqui vêm, na demanda de sossego e da suave luminosidade mediterrânica destas terras de Santa Maria…

Foi o meu caso, quando aqui cheguei (quase de fraldas) em 1948, com os meus pais.
Desde então, até me fixar no sítio onde hoje moro, percorri uma boa dezena de casas térreas - desde a Senhora da Saúde até ao Largo da Sé, em Faro.
Outro dia, recordando, entre amigos, este itinerário de vivências, dei comigo a perguntar para onde foi o Sol que todas aquelas casas desfrutavam, então, a maior parte do dia! Algumas delas ainda existem, contudo ensombradas, perdidas ao fundo de saguões bafientos e salubres, servindo, muitas vezes, de vazadouros de ocasião para muitos daqueles que moram num qualquer mamarracho de 30 ou 40 metros de altura.
Hoje, teimam ainda em subsistir por este Algarve fora, algumas destas antigas vivendas urbanas emparedadas entre silenciosos e sombrios abismos de betão!
Uma coisa, porém, é certa, estão roubando, por todo o lado, o Sol aos algarvios sem qualquer compensação, pedido de desculpa, ou mais-valia - quiçá brindando-nos, por vezes com tímidos espaços verdes: - ou quando o rei faz anos (o que já não acontece há muito tempo) ou o mais certo, em períodos eleitorais, entre um punhado de boas intenções! É sempre esta a forma airosa com que os nossos "politicamente corretos" representantes nos têm tratado!
Já chega de montanhas de calhaus de cimento que nos derramam, permanentemente, sobre as cabeças, talvez para nos obrigarem, qual foto tropismo, a crescermos cada vez mais, para procurar um Sol cada vez mais alto e que, em tempos, nos vinha "comer à mão"!
Estão roubando o pouco Sol que teima ainda em brincar nos últimos telhados do vermelho citadino do Algarve.
Quase todas as cidades da orla algarvia vão-se apagando no seu traçado antigo
E assim, por todo o lado se vai destruído, ou procurado destruir uma Arquitetura Popular Urbana. Onde platibandas terraços, varandas de ferro forjado, portas e janelas policromáticas e poli variadas, - em nome de projetos cada vez mais despersonalizados, de cimento e alumínio, por vezes de construção duvidosa, e vazios de Arte e de História que os caracterize e procure integrar minimamente!

Acusar quem, para quê? Não delapidamos nomes e, muito menos, consciências; também não somos os Juízes de Nuremberga!
Resta-nos a doce esperança de que há mais vida para além do cimento, e, "tal como a água mole em "argamassa dura"... Tantas fazem que mais ninguém os atura"…Por outro lado, estão chegando as gerações de edis, do terceiro milénio; são já certamente muitos dos nossos filhos, cansados de "políticos pimba", com ideias novas, ecológicas, sustentáveis, humanizadas...
A raiva dos espezinhados de hoje - vítimas do "progresso" - descerá então à rua, trazendo, nos dentes e nos olhos, o gesto vingador das águas correntes para lavar a valeta e o que resta das estátuas de sal que hoje esterilizam o nosso quotidiano de secura e desalento e ainda havemos de voltar a petiscar na nossa rua com o alegre chilreado das crianças que na minha infância enchiam as noites de verão…
O tempo dos "cangalheiros de cidades" está chegando ao fim!
As cidades latrina, de hoje, falam por si! E há tantas em Portugal, meu Deus!
Acreditamos, piamente, que muitos dos novos autarcas trazem já consigo aquele punhado de sonhos que nenhuma tecnocracia, ou lucro furibundo, irá fazer destruir.
Mal de nós se, um dia, deixarmos de acreditar no Homens e nos seus Profetas!
Vêm aí as Cidades de Luz!

•  •  •

Finalizo, enviando daqui o meu singelo abraço de gratidão (que creio será também o da maioria dos algarvios esclarecidos e amantes da sua terra) à Nobre Cidade de Tavira (talvez a única cidade do Algarve que tem sabido, com elegância e dignidade, crescer sem ter perdido a Alma), extensivo a todos os seus autarcas, aqui, "rosas" ou "laranjas" tanto faz, desde que os tenham tido no sítio, quando precisaram! Bem hajam!
Até ver são um bom exemplo para os urbanistas do 5º. Império, como diria Pessoa. 

>