Francisco Gil

Contemplações

Francisco Gil

Amadeo: no cruzamento das vanguardas europeias


Na primavera de 1914 é declarada guerra entre as principais potências europeias. O conflito foi provocado pela crescente desconfiança e forte militarização entre a informal “Tríplice Entente” — os Aliados (Grã-Bretanha, França e Rússia) e a secreta “Tríplice Aliança” (Alemanha, Império Austro-Húngaro e Itália). Durou quatro anos e ficou conhecida como “A Grande Guerra”. Um conflito intenso, onde morreram quase 60 por cento dos intervenientes nas batalhas. Inicialmente neutral, Portugal entra na guerra em 1916 ao lado dos Aliados, depois de aprisionar navios alemães e austríacos que se encontravam fundeados no estuário do Tejo. Portugal mobilizou mais de cem mil homens para a guerra. Cerca de oito mil morreram nas trincheiras da Flandres ou nos campos de batalha em África.

Nesse ano de 1916, quando o país se mobilizava para a guerra, Amadeo de Souza-Cardoso, artista visual de Manhufe, Amarante, com 28 anos, expõe em Lisboa cento e catorze pinturas, reunidas sob o título «Abstrações». Um grande escândalo na época em que Portugal, país conservador na periferia da Europa, tinha algum pejo na aceitação das novas correntes artísticas, onde o figurativo e o academismo davam lugar a movimentos, como o cubismo ou o abstracionismo.

Amadeo, que em 1905 começara a estudar  arquitetura em Lisboa na Academia de Belas-Artes, mudou-se para Paris no ano seguinte e por lá permaneceu durante 8 anos. Viveu durante uns tempos no bairro de Montparnasse, estudou nos ateliers de Jules Godefroy, Freynet e conviveu com vários criadores da sua geração, tornando-se amigo de artistas como Modigliani, Robert e Sonia Delaunay. Foi o único pintor português a conhecer e conviver com os maiores pintores do seu tempo: Matisse e Braque, por exemplo.

Amadeo de Souza-Cardoso começa por ser influenciado pelo estilo arte nova. Depois experimenta um estilo híbrido em que associa essas formas lineares ao cubismo e ao futurismo, utilizando linhas geométricas curvas. É um artista de vanguarda no seu tempo o que contribuiu para algum esquecimento da sua obra e do seu valor cultural durante várias décadas. Participou no Salon des Indépendants (1911, 1912 e 1914) e em 1913 participa na primeira grande exposição de vanguarda nos Estados Unidos, o Armory Show, ampliando as suas referências ao Expressionismo alemão que terá grande influência no seu trabalho.

No início de 1918, surge uma epidemia na Europa que irá infetar e matar milhares de pessoas em todo o mundo. Ficou conhecida como “pneumónica”, a gripe provocada pelo vírus influenza H1N1. Entre setembro e novembro desse ano, chegaram ao país, milhares de pessoas retornadas das colheitas em França, além de milhares de repatriados portugueses que voltavam dos cenários de guerra. De norte a sul de Portugal, iriam morrer da doença um total de 50 a 70 mil pessoas. Amadeo seria um dos infetados, assim como várias outras pessoas da sua família.

Morreu no dia 25 de outubro de 1918 em agonia respiratória, tinha 30 anos. Amadeo fez parte duma geração que foi duplamente sacrificada: uns morreram em batalha outros caíram pela pneumónica, numa época em que a informação era escassa e as condições de vida muito severas. A Grande Guerra terminaria oficialmente às 11 horas e 11 minutos, na manhã do dia 11 de novembro de 1918.

Na década de 1980, a maioria das obras que pertenciam a particulares foi adquirida pela Fundação Calouste Gulbenkian. No museu de Arte Moderna desta Fundação em Lisboa, podemos descobrir alguns importantes trabalhos deste pintor talentoso e original, que absorveu muitas das vanguardas europeias do seu tempo e que, infelizmente, não pôde oferecer ao mundo todo o valor da sua arte. 
ver mais em: http://hdl.handle.net/10362/46954

* Tela e Madeira, Óleo e Colagem, Sem Título, 1917 [ Amadeo de Souza-Cardoso ] - Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal