Desidério Lucas do Ó

Cante na Alma

Desidério Lucas do Ó

O Cante Alentejano

Quando passo em revista a minha já longa vida e procuro encontrar um fio condutor, uma motivação constante que me acompanhou ao longo dos tempos, tropeço, naturalmente, no êxtase que paixões e amores pontualmente provocaram.
Contudo, a paixão mais constante, aquela que nunca esmoreceu e que até hoje se mantem, foi e é o cante, o cante alentejano.
Foi o cante que me deu alma, me deu vida, me insuflou daquele sentimento de pertença e de constância que faz crescer raízes e solidificar afetos.
Foi o cante que ouvi nas tabernas vizinhas da nossa casa que me transportou para o belo indescritível que tanto pode ser o voar sereno das andorinhas ao fim da tarde como a solenidade bruta do trovão inesperado que quebra o silêncio da noite.
O silêncio daquela noite, na Cuba, quando um grupo de homens descia lentamente a rua entoando uma moda com a qual elogiavam as conquistas da revolução e a derrota da reação.
A alegria dos bailes dos mastros, quando se cantava ao despique, tentando conquistar as moças com o improviso daquela quadra com a qual se queria mandar abaixo a resistência feita de cheiro a mentrastes e rosmaninho.
E a indescritível sensação de estar ali, de pé, segurando em cada braço o braço de um amigo, sentindo o pulsar da sua respiração, da sua excitação no momento da entrada, do requebro que conseguia atingir quando todos se calavam e ele, lá no alto, exibia o seu trinado solitário e vigoroso.
E a sensação de um enorme orgulho, quando o ponto começara no tom certo, o alto entrara bem e com preceito e o coro respondera adequadamente, forrando o cante com o enorme trovão das muitas vozes, em uníssono.
Terminava-se com um enorme alívio, com alegria, oleavam-se as gargantas com mais uma pinga e a festa continuava.
Continuava e continuou, mesmo nos tempos das vacas magras, quando quase já se não ouvia cantar nas tabernas e quando quem dava o mote era olhado com suspeição pelos arautos da extinção, que auguravam o fim de uma velha tradição que definhava.
Não definhou, voltou com toda a força, com novas gerações que entraram para a casa comum com mais força, mais vigor, mais fantasia.
É nesta casa que estamos, é esta a nossa casa.

Desidério Lucas do Ó
São Brás de Alportel, 2.6.2019
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