Movimento & Ilusão


O encontro entre a animação... e a infância
Catarina Calvinho Gil

Que bela é a infância… tão confusa e tão ingénua. A imaginação, essa, voa livre e sem fronteiras, como um pássaro ao qual não é roubada a liberdade. A imaginação, essa, não conhece barreiras nem clausura, como às aves que perscrutam o céu, o mar e a terra.

Nos tempos de criança, os rabiscos na parede contam histórias e as figuras recortadas de revistas ou jornais falam entre si. Traços, formas e corpos preenchem folhas num dinamismo tal que parecem ganhar vida, esculturas erigidas por pequenas mãos curiosas emancipam-se ao ritmo da sua plasticidade, ao ritmo das pequenas mãos que as esculpem. Não acontecerá semelhante fenómeno às criações de um animador? A esses corpos plásticos, dinâmicos, animados, que prosperam numa dimensão tão inocente e deslumbrada quanto a da imaginação de uma criança?

Frequentemente se reage ao cinema de animação com um encolher de ombros, na crença estigmatizada de que este se dirige exclusivamente ao público infantil. As raízes são profundas, a companhia de Walt Disney poderia falar-nos sobre isso, mas com carinho arriscaremos desconstruir este preconceito semeado no início da década de 1920

Existe, sim, algo de infantil na animação. Digamos, algo de ingénuo, inocente, próprio de uma criança. Assim como o mundo real é o palco para a imaginação prosperar, a animação é o lugar onde esta se pode materializar. Um lugar onde figuras recortadas com ternura ganham vida, onde esculturas erigidas com minúcia se transformam, mesclam e descobrem, onde belos desenhos escapam ao domínio do seu suporte e voam, livres. A animação é um palco para a realidade se redescobrir e contemplar de novas e refrescantes perspetivas. A animação convida-nos a revisitar os tempos de infância, a reexperimentar imaginar sem preconceitos e, talvez por esse motivo, se dirija mais aos que já esqueceram como é ser-se criança, como é imaginar. Imaginar que um pedaço de plasticina tem sentimentos ou que os brinquedos têm uma vida secreta. Imaginar desenhos feitos numa parede a fugirem pela janela ou um recorte de papel a falar. Imaginar, simplesmente, questionando o que se receia questionar, transformando o que se acredita não poder ser transformado

Mas nem sempre a infância é bela. E porque falar de animação, cinema, arte, é também falar do mundo, importará recordar os atuais momentos de crise, tempos de urgência onde proliferam impressionantes atentados contra a humanidade. Julgam-se os justos, perseguem-se os fracos. Separam-se famílias, aprisionam-se crianças, violam-se direitos que jamais deveriam ser violados. E lá do topo vemo-los sorrir, absortos pelo poder, tão perdidos e confusos, sem qualquer memória do que é ser-se humano, do que é ser-se criança… 

(2019-07-01) 

* Imagem de “Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias” (2019) de Regina Pessoa, quando as duas personagens se preparam para desenhar numa parede. Fonte: http://icateca.ica-ip.pt/filme/TIO+TOMAS+E+A+CONTABILIDADE+DOS+DIAS/2234

https://doi.org/10.23882/2184-5689-005